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Como Me Tornei O Que Não Esperei Ser

De vez em quando você se depara com coisas que não entende. E não é fácil aceitar que nem tudo está sob seu controle e talvez seja ainda pior enxergar que você está sentado num banco de carona, em caminhos que são escolhidos em função de algo maior. Você tenta esticar a mão para agarrar aquele sonho de muito tempo e aí a visão perde o alcance do que seus olhos achavam que poderiam tocar. Tudo vira de cabeça pra baixo, gira e te coloca de volta ao lugar inesperado da linha de largada, para o que de verdade deve acontecer. Mas você não nota que ali é aonde você precisa estar, acha que está preso num looping de erros, entra em guerra com o mundo e fica exausto de si numa briga que jamais irá vencer. É bem difícil se entregar e quanto mais você tenta sair, mais seus pés ficam presos num cimento impenetrável. Você fica congelado e sem respostas para tantas perguntas. Até que de repente o coração desacelera, o vento sopra para desembaçar seus olhos e fazer você dar de frente com a razão de t

Coisa Feia Coração de Pedra

“Neste quarto, sou tigresa; parte Borges, parte Blake (somos tigres enjaulados): sou a tua simetria.” (Tigres, por Felipe Franco Munhoz, em Identidades, pág. 47) São algumas horas perdidas e flashs estelares começam a iluminar o profundo dos teus olhos, levando toda minha atenção para um lugar só nosso que surge como um click todas as vezes que sonho acordado contigo. De repente já não somos mais tão jovens, temos dois cachorros tão gentes, um menino dormindo no berço, contas para pagar e cada borbulha do espumante tira dos seus lábios sorrisos que valem a pena ser vividos no silêncio de dias difíceis ou no calor dos versos de Neruda que são ditos ao colchão. Então ergo minhas mãos em direção ao teu abraço e vejo assustado que nele estão todas as coisas que custo a acreditar que existem, talvez por ter me forçado a não esperar da vida esse lado Woody Allen de enxergar o outro e seus defeitos, já que guardo no peito durezas cinzentas feitas de água, sal e tristezas. Porque sei que

Quem Tem Fé Vai a Pé

“Desta sagrada colina Mansão da misericórdia Dai-nos a graça divina Da justiça e da concórdia” (Hino ao Senhor do Bonfim) De veste branca, com um terço enrolado nas mãos, ele desce pela Ladeira da Conceição da Praia e encontra o povo reunido em cânticos de mesma língua, no aguardo da benção que envia os passos seus. Sente o sol brilhar no rosto e acredita na força que vem dos céus, que mostra o cajado e dá esperança aos devotos. Anda na peregrinação dos que crêem, do Lacerda à São Joaquim, com as águas e meninos, numa multidão sem fim, para quem sabe assim viver do sim que o outro traz no coração. Se aperta nos Mares, respira o que tem de ar e sente a dor de quem sabe que tudo é pequeno diante do Pai. Então já cansado, chega em Roma e vê Dulce dos Pobres tão Santa, segue com a energia sem igual dos Filhos de Gandhy pela Dendezeiros sob o toque de agogôs, dá um último fôlego impulsionado por milhares de fiéis com seus sons, manifestações e alegrias, para chegar na Colina Sagrada e

Das Visões da Tempestade Que Não Tarda

“Nós crescemos vendo inúmeras coisas. E mudamos pouco a pouco. Avançamos conscientes dessas mudanças que se tornam reiteradamente perceptíveis de diversas formas. Mas, se por acaso eu pudesse impedir tais mudanças, manteria aquela noite intocada. Uma noite perfeita, repleta de singela e doce felicidade.” (YOSHIMOTO, Banana. Tsugumi, p. 120) Cada vez que você me diz não, sinto como se fosse a última. Porque nem tudo é paciência e dizer que ama não pode matar o amor próprio. São tantas pequenas decepções que nesse acumulado de ilusões estou enchendo um rio para tocar meu barco, já que ando tão cansado daqueles que só estão ao meu lado apenas quando convém. É tudo um pouco frio quando vejo nos teus olhos que aquela fogueira não queima e se a culpa for minha então que eu não seja mais a lenha dessa falta de sinceridade. Ainda mais que essa vida boomerang devolve só o que não queremos, o fim do sorriso sincero, o vazio de um pequeno cuidado, o sim para o que não é nosso. Até que o vento va

Do Dia Que Desejei Ser Seu Namorado

“Vou trazer-te das montanhas flores alegres, avelãs escuras e cestos silvestres de beijos. Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras.” (Pablo Neruda) Nada do que eu possa dizer consegue retratar aquele dia louco quando você surgiu para mim pela primeira vez. Não que eu tenha esquecido o silêncio cortado por sua voz alta ou a forma engraçada de só enxergar seu rosto sorridente em meio a tantas pessoas que chegavam e partiam para seus caminhos indiferentes. Foi tudo fotografado em alta resolução por meus olhos espantados, que não conseguiam acreditar que tudo convergia para algo maior. Como se até aquele momento, o que eu vivi tenha feito parte de um gigantesco plano assustador do destino para que eu estivesse sentado naquele banco no aguardo do exato instante em que você chegaria. Um estalar de dedos que anunciou a mágica que iria acontecer. Para brotar da cartola você, seus cabelos longos e o jeito desesperado em que me deixou sem nem ao menos me notar. E a partir d

O Banho que Cura a Ressaca

“Eu, hoje, acordei mais cedo e, azul, tive uma ideia clara. Só existe um segredo. Tudo está na cara.” (Toda Poesia, Paulo Leminski) Talvez seja paranóica essa vontade de você que vem em goles fortes como a solidão da noite infinita. Seria o purgatório ter um bocado de seus sussuros presos nos meus ouvidos, em palavras tão certas e nuas que doem os olhos e ficam ecoando repetidas vezes na cabeça como numa oração. Não que eu queira a paz chata dos momentos perfeitos, tão sonhada por pessoas que acabam caindo de seus próprios céus feito estrelas cadentes, mas não seria ruim que meu copo ao menos uma vez estivesse vazio desse desejo doido e insaciável de morder sua boca para ver calados seus gritos. Evitar duas ou três doses do seu controle que sempre me leva a essa escravidão de repetir loucuras e te ganhar sem respeito de nada e ninguém. Para quem sabe até beber de algo que faça esquecer tudo de pecado que adoro em você e em mim é feroz feito fogo. Mesmo que seja incontrolável o vento d

Venha Que Só Te Quero

“Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo eu morrerei contigo.” (Herberto Helder, O Amor em Visita , escritor português que conheci no blog do Antonio Nahud Júnior ) Recebi aquela bala no peito, num disparo perfeito. Você abaixou ao meu ouvido e disse que agora eu era seu. Apertou o buraco da ferida com o dedo, enfiou a unha até confundir o esmalte vermelho com meu sangue. Sentiu meu coração pulsar freneticamente, em centenas de batidas por segundo. E quis furá-lo, enquanto via meu rosto dominado olhar fixo para seu scarpin de couro de cobra. Quem sabe encontrar a violência da paixão no vazio, tocar a morte dentro da carne viva. Era um desejo louco de ter só pra si a poesia, de engolir o que já tinha lhe entregado por vontade. Mas preferiu me julgar com seu rosto de anjo, amarrar minhas mãos, vendar meus olhos com um pedaço rasgado do seu vestido de inúmeras cores. Para depois sentar sobre a cama, com as pernas cruzadas, deixando que eu escapasse. E tentei me arrastar de bruços

Do Pouco Que Se Perde

“Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar.” (Jorge Luis Borges, Funes el memorioso , in Ficciones , traduzido por José Colaço Barreiros) Não se sabe que lado irá tocar o chão primeiro ou qual apontará para o céu decidindo o próximo passo. É sempre um arrepio trágico, um vazio na barriga, aquela sensação de que não existe controle. Uma mágica tão fugaz que surge e termina sem ar. E é por isso que nada se acaba, nem a escolha já feita ou a decisão que se finge de dúvida na busca da certeza maior. Tudo converge para aquilo que somos e não há escapatória. Pois, de todas as faces da moeda que sobe girando a escolher destinos, existe aquela que reflete o que está dentro dos olhos, o brilho que une os irmãos e nunca se apaga. Ao Som de: Novos Baianos – Mistério do Planeta

Parte Pra Cima de Mim Sem Piedade

"Andávamos sem nos procurar, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar." (Julio Cortázar, Rayuela, traduzido por Fernando de Castro Ferro ) Você tem a péssima mania de sorrir daquele jeito que sabe me conquistar. Faz isso de propósito, principalmente quando começamos a brigar, só para ter meus olhos pregados em seus lábios. Ainda tento de todas as formas fugir, sigo firme na discussão, viro o rosto para a parede, mas você conhece a minha sede, acaba com as minhas armas. Então, já cansado de lutar contra o que não resisto, digo besteiras sem sentido, invento os piores motivos, até fazer uma cara de errado mesmo quando estou certo. Tudo porque, silenciosamente, você me pesca com seu anzol trapaceiro, pisa na minha irritação com seu sapato scarpin, esgota minhas palavras com esse seu irresistível sorriso perverso... Sua boca de batom vermelho, cheia de dentes brancos e amolados, me agarra por desejos tão picantes, faz de mim o que bem quer em risadas perigosas! Ao So

Coruja Enfadada do Tempo

"Entendo que um romance possa parecer delirante quando há um marciano ou um yeti e realista quando o personagem é uma pessoa, por mais verde ou abominável que seja.” (Sergio Bizzio, escritor, roteirista e diretor argentino, em depoimento à revista Los Inrockuptibles , divulgado no blog do Joca Reiners Terron ) Enxerga a própria vida feito estrangeira. Talvez por ter vivido rápido demais as bocas de pessoas andarilhas ou provado de sabores que ao final não foram os últimos. Como um relâmpago que corta o chão em fogo, em passant , escrevendo cicatrizes profundas para não deixar esquecer que nem toda resposta dita é solução. Pois se manter longe do descontrole às vezes é uma questão de não dizer as palavras certas e ela levou tempo demais para descobrir que a curiosidade morde a consciência vagarosamente, até tirar um pedaço. Então, franzida e assustada sobre um galho de esperança seco, arregalou os olhos para uma realidade que não lhe pertencia. Ignorou campos minados e foi detonad

Sem Vigor Para Nada Mais

"Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que dá no mesmo." (Jorge Luis Borges traduzido por Vanessa Barbara, Ulrica ) Demasiadas vezes ele tentou enxergar aquele algo que dizem ser o motivo pelo qual importa viver. A essa altura de esforços incessantes, já havia se arrependido de atitudes bastantes para embranquecer seus cabelos ou fazer cair os poucos que ainda restavam. Procurou em lugares afastados sem sair do lugar e nem ao menos contara aonde ia ou o porquê das saídas repentinas. Abandonou apenas um bilhete despretensioso num canto esquecido de si mesmo, daqueles que colam na porta da geladeira, escrito que de qualquer forma um dia porventura voltasse para resolver o que ficou pendente. Como se alguém fosse se preocupar, talvez aquele outro que conversa com ele durante o tempo em que fica sentado horas na cama diante do teto rachado. Nisto, por seu turno entediado de aguardar a solução, foi para a cozinha, abriu uma g

Diz Por Que Foi Com Você

"Melhor é lê-las como quem adivinha os sonhos e o futuro no fundo da xícara árabe ou nas cartas." (Xico Sá, Cão de Guarda no Sono da Amada ) Poderia ter sido mais um sorriso dentre tantos que avistava entediado de tudo. Você não respeitou minha humanidade e fez meus olhos congelarem para te ver passar slow motion por eternos segundos de completo magnetismo. Seus cabelos chicoteavam meu ar em cada virada de rosto, como se fossem me aprisionar num emaranhado de segredos e pecados. Cada palavra que lia da tua boca arranhava meu peito, encravando cicatrizes para nunca mais te deixar esquecer. Então tive medo de te perder para um dobrar de esquina qualquer, de perceber que naquele espaço tuas pegadas não mais estariam em alguns instantes e talvez para sempre. Fiquei completamente perdido feito astronauta em visões de estrelas, doido varrido pelo brilho do seu cometa, ignorando as bagagens do mundo ou se nele outras pessoas existem. E por tanto te desejar, escolhi amar você pelo t

Melhor Quando Está Comigo

"A primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário" (Walter Campos de Carvalho, A Lua Vem da Ásia ) Seguia a claridade que entrava pela greta da janela, sorrindo com as criaturas engraçadas que se formavam na parede, entregue aos pensamentos que a faziam voar. Diante da noção de que existem bilhões de pessoas no mundo, nada lhe dava mais prazer do que não se sentir solitária. Recebeu um pedido de casamento, daqueles inesperados de deixar a perna bamba e os olhos marejados. Disse um sim com a rapidez de todas as atitudes que definem para sempre o rumo da vida. Então apagou as tristezas como quem fecha uma cortina, despreocupada com tudo aquilo que fica no lado de fora. E durante aquela tarde nada a atingia, tinha dentro do peito uma grande euforia. Sequer lembrou do futuro aluguel ou cogitou pagar impostos, fazer mercado, dividir os gastos de uma vida real. Viu apenas o que era bom, divertido e mágico. Uma cama, ele e seus beijos,

O Futuro Que Não Chega

“As horas desfazem muitos planos, mas também abrem muitos caminhos.” (Roberto Ney, As Horas ) Apesar de alguns desconfortos, não conseguia sair do lugar. Vinte quatro anos, sete dias e oito horas de espera, sentado no mesmo banco. Um ponto de ônibus, na beira de uma pista esburacada, em frente a uma faixa de pedestres e bem embaixo dum semáforo quebrado. Rosto petrificado, não tinha expressão alguma. Se não fosse o fato de piscar os olhos de vez em quando, seria facilmente confundido com um defunto embalsamado. Barba deveras grande, cabelos emaranhados, boca rachada, roupas gastas. Vestia um paletó, não usava relógio e segurava uma maleta. A gravata folgada apertava o pescoço, dificultando a respiração. Folhas secas cobriam seus pés descalços, repletos de calos e feridas abertas. Aprendeu a suportar as dores. Sequer falava uma palavra e parecia não se incomodar com o sol forte, nem com as chuvas ou qualquer outra mudança no tempo. Não tinha amigos, não sabia a própria idade, nunca che

Me Mate Logo Vai

"A ventarola da cabine ficou aberta, o vento entra e sai furiosamente, joga um frio que arde em meus lábios." (Paulo Scott, Ainda Orangotangos ) Ficara sentado por um longo tempo naquele bar, com os olhos grudados no celular sobre a mesa, enquanto o café amargo esfriava o gosto na xícara. Vez por outra, desviava o olhar para a janela, perdendo a atenção ao ver a agitação da rua. Conseguia enxergar bem mais do que automóveis e pessoas apressadas do outro lado do vidro, numa fobia enlouquecedora de detalhes. Gotas de suor escorrendo pelos corpos, o brilho cegante dos metais refletidos no sol, insetos gigantescos voando, labaredas sufocantes ao asfalto, fumaças de cigarro riscando o céu, sombras fugitivas. Mas logo voltava a focar no bendito aparelho, engolindo-o com seu padecimento, aflito por não ter o controle da situação, que nem um prisioneiro no corredor da morte. Seus dedos da mão direita tateavam o balcão irrequietos, balançava as pernas, como uma válvula de escape para

No Coração da Estrela

para Géssica, porque eu a amo. Decidiu, então, ser o que de si era mais romântico, como se fosse um camaleão pronto para se amancebar. Engoliu a acanhação abarrotada na garganta e suspirou o ar da coragem profunda, vestido de sorrisos cheios de declarações sinceras. Da sua boca saíram coisas de amor afrodisíaco, apimentadas no desejo, regadas por um aconchego que nem cabe em palavras vãs. Agüentou a provocação do cangote perfumado até o insuportável, virou herói da tentação encravada e libertou esfomeado as vontades mágicas guardadas no peito. Disse hasta luego aos desassossegos, fez para os dissabores um enterro e abriu os braços rumo a ventura. Apaixonado, tragado pela entrega alucinante que pulsa por todo corpo! E assim se viu no exato momento em que sua vida se transformaria. Segurou pela cintura aquela que te dá prazer, ajeitou o cabelo dela sobre a orelhinha élfica e, amordaçado naqueles olhos intrigantes, deu um beijo com gosto de agora é para sempre! Ao Som de: Djavan – Sina

Dois Birrentos Fazem Um Par

"É assim que eu sinto... Em cada gesto, em cada movimento dela vejo refletida a minha própria vida." (Banana Yoshimoto, Tokage ) Se vez por outra acontece da gente falar ao mesmo tempo, veja que é na vontade de darmos certo. Porque não é pouco o sentimento que existe e isso não é um palpite ou qualquer daquelas balelas sem futuro. Você pode até ficar de bico ou torcer o nariz para mim, mas seu coração não tem como fingir que chegou a hora de sermos nós! Agora tudo de baita mirabolante vai surgir, o momento é aqui e até os prédios irão explodir em estrelas que juntas formarão nossos nomes. Digo que nada mais será tão apagado, pois a felicidade está cá, do nosso lado, para nos fazer desaguar num lugar super bom. Suas manias, meus defeitos, nossas apoquentações, tudo vira graça, principalmente as diferenças, e vamos cair nas gargalhadas das nossas doidas bobagens! E pode vir qualquer algazarra, o apocalipse e seus anjos, uma guerra intergaláctica, bigornas podem cair do céu, as

Manjar de Açougueiro

"Eram cravos as flores que incendiaram de esperança a manhã e me floriram a alma até não mais me lembrar." (João M. Jacinto) Seus dentes podres de nicotina não tinham muita importância na rotina de açougueiro, abocanhavam apenas garrafas geladas de cerveja perto do horário de almoço, para abrir o apetite, afinal, nem todas as carnes dão vontade de comer, sobretudo as dos suínos irritantes que morriam aos gritos. Esfaqueava bichos o dia inteiro, retirando suor com as mãos, feito um cirurgião de hospital público, indiferente aos olhares alheios de desespero. Sentia tesão ao cortar pescoços de galinhas e enxergava o sangue pingar sobre pratinhos limpos de louça como se fosse um espetáculo teatral, seduzido. Molho pardo, dizia ávido. Sua aparência asquerosa lhe garantia o repúdio até dos piores nojentos. Por isso tudo, não tinha interesse pelas mulheres ou elas por ele, tanto faz. Nem as quengas aceitavam seu dinheiro, pois não suportavam o mau cheiro. Para satisfazer as vontade

Seja Aqui Ou Na Romênia

"Olhando para o chão, ele foi até a cozinha, abriu a geladeira e jogou a sobremesa no lixo. Naquela noite, mais uma vez, dormiu no sofá." (Daniel Pellizzari, Ovelhas Que Voam Se Perdem no Céu ) Poderia ser diferente, mas ela não se interessa, está dispersa, de olhos entreabertos para tudo que já foi. Não deseja entorpecida meus afagos e não sente nos beijos, nos lábios, a pressa louca dos apaixonados. Vive de cada dia o suspiro escondido de um outro, deixa de lado a magia do agora e faz do sorriso um abrigo de si mesma, de mim. Escorrega pelos dedos, foge dos meus perigos, não sabe se entregar. Sua batalha é com a tristeza, num precipício, parada no tempo, feito uma flor de espinhos cravada no peito. Sente a magoa de ilusões espatifadas, bebe da crueza enfadada daqueles que não enxergam o amanhã. Pois faria para ela o que não cabe em juras, lhe mostraria a cura, o mar por trás das terras desertas. Buscaria, se fosse preciso, entre os cantos do mundo, no céu, em qualquer luga

Se Há Mágica em Viver

"(...) de tolerar um ao outro quando sacrifícios forem necessários e deixar que todo o resto se foda, se destrua e morra, porque não haverá problema." (Daniel Galera, Até o Dia em que o Cão Morreu ) Rouba a voz dele com um beijo e com o rosto sobre seu peito, pergunta se vai querê-la mesmo quando descobrir seus defeitos. Diz que com ele quer ter um filho e nada consegue tirar do coração a certeza de que será um bom pai. Mas insegura, encolhe o corpo, abraçando-o forte, e pede desculpa por ser assim boba. Ele fala baixinho ao ouvido que tudo bem, que se isso for bobagem, então, não teriam escapatória, seriam, sem pestanejar, um casal de bobos. Acarinha seus cabelos encaracolados e revela a grande vontade de ter filhos com nomes de poetas, tão bonitos quanto ela! Que sejam traquinos, risonhos e esbanjem a luz da felicidade mais pura! Sorrindo, naufragado nos olhos castanhos quase esverdeados dela, diz que não deve se preocupar com o amanhã, pois, de repente, seus defeitos pode

Gritos Doidivanas

“Deixas-me vidas secas, como chão de açude, feições de Beckett; e foges perversa, para sugar outros homens, seringa nas glândulas.” (Xico Sá; Catecismos de Devoções, Intimidades e Pornografias ) Tragou até que a ponta incandescente se esvaiu em cinzas e numa fumaça que embaçou seus olhos com o sabor áspero da sua própria escatologia. Guardou um punhado de ar nos pulmões com arranhões de gilete na boca entreaberta e fotografou os dentes podres dos anjos entre sorrisos iconográficos de gozo. Sequer segundos lhe restavam, era aquele o momento de provar seu valor. Ascendeu o isqueiro na gasolina que brilhava ao asfalto empoeirado e fez em labaredas as cartas de amor que nunca entregou. Verborragias baratas da decepção que perfurou seu coração como prego enferrujado. Cada poesia borbulhava nas explosões sentimentalóides que se proliferavam em sua fogueira libertária. Desabafos contínuos que o fizeram ter ódio de si e do mundo. Suportou a dor com as lágrimas guardadas, devorando cada pedaço

Os Procurados

"Se sou pirata e desbravador de sertões, mago hindu e encantador de serpentes, como rotularam-me de funcionário e marido, eleitor e cidadão de um país de limites estreitos e geográficos?" (Walter Campos de Carvalho, Tribo ) Vesti a roupa de palhaço e corri até o banco. Gritei o assalto, empunhando meu revólver de plástico calibre trinta-e-dois. Cabelo de pompom, nariz vermelho, gravata borboleta, sapatão de bico quadrado, com o rosto pintado e a segurar uma bexiga azul amarrada num barbante. Raspei o cofre e levei a carteira rechonchuda do gerente. Na hora que o alarme tocou, a afobação. Surge um carro na porta e eu pulo dentro. Minha esposa no volante, com meus três filhos no assento detrás. Um de seis, a outra de quatro e o bebê de nove meses. Havia acabado de roubar a caranga na frente de um supermercado. Pelo retrovisor, as balas cortavam o ar. Orangotangos armados e o barulho polifônico da sirene. Cresci sob os paparicos de dondocas, mas hoje, mesmo sem um tostão furado

A Mulher de São Jorge

para José Agrippino de Paula, o supercaos. Cabia o mundo em seus olhos castanhos, quase esverdeados, abrilhantados por todas as estrelas dos sonhos mais infantis. Pelo retrovisor, avistava os faróis no engarrafamento gigantesco. Soprava um vento gelado contra os vidros da janela do seu automóvel, fazendo embaçar a visão, distorcer a realidade. Nada conseguia se mover em quilômetros no abarrotar da rodovia. E o rádio tocava músicas antigas de amores desperdiçados, que a fez recordar o quanto duro era seu coração. Seus dedos dos pés franziram, os pêlos arrepiaram e o corpo ficou trêmulo. Deitou a cabeça sobre o volante e fraquejou no arquear das sobrancelhas, que se alongou até as pálpebras, fazendo-a cair num adormecer profundo, quase moribundo. Permaneceu por algum tempo naquela posição, sob o ronco amortecido do motor, abafada por dezenas de buzinas raivosas. Quando acordou, sentiu a boca amarga em enxofre, a pele seca e enrugada feito escama de peixe. De tão enfastiada e atordoada,

Nos Pombos Sem Piedade

"Não estou sozinho, pensou em gritar, mas desistiu quando enxergou as manchas no teto do quarto e percebeu que estava na cama." (Daniel Pellizzari, A Fronteira no Fim do Mundo ) Morgado num banquinho de praça, vejo pombos bicando migalhas. Gravata folgada, analgésicos na barriga vazia, nariz entupido pela fumaceira dos automóveis. Sobre minha careca avantajada, arranha-céus arrotam suicidas desempregados, os aviões destroem as figuras engraçadas das nuvens, o azul é rasgado pelo monóxido de carbono cinzento que abafa os pulmões pequeninos dos bebês desafortunados. Meus olhos avermelhados lacrimejam com a poeira sujismunda que chega no vento... Sentado na pracinha, diante de tudo que me dá fobia, meu mundo parece mais caótico do que de costume. Não há anjos com harpinhas mágicas no tráfego ou heróis fantasiados detendo bandidos que roubam pirulitos de morango das crianças inhaquentas. É cada um por si e Deus com o rosto virado pra não ver a nossa pouca-vergonha! Aí eu aperto

Porcos Andam Em Duas Patas

"Enjoei de mim, como poderia ter enjoado da cara de um vizinho que nunca me tivesse feito mal em sua vida - e como não sou obrigado a viver de enjôo, cortei simplesmente o mal pela raiz, eliminando-me da minha vista." (Walter Campos de Carvalho, A Lua Vem da Ásia ) Vez por outra acontece de um anjo fujão pular das nuvens para degustar da nitroglicerina humana. Despenca num beco qualquer perto de canto algum, onde nada surge por acaso e os pássaros urubuzentos vivem na decadência de engolir sobras de atenção. Seus pés de cetim viram pneus de borracha grossa no asfalto esburacado que cozinha os neurônios com pitadas de enxofre. Os olhos azuis como um céu de algodão se fecham num tom acinzentado para amenizar a claridade que deixa a todos cegos. Chega nuzinho de não me toques, numa busca agitada de saber de tudo ao mesmo tempo já que agora cada minuto enfraquece seu organismo com a velocidade inevitável da morte. Arruma um short rasgado num varal de cortiço, ponga no primeiro ô

Apressado Não Come

"E se a vida atropelar, de nuevo, na mesma curva, anota a placa, menina, e arrisca no bicho." (Xico Sá) Montou na magricela e pedalou desembestado para além das redondezas do bairro. Recebeu o vento sorrateiro nos seus cílios tentaculares, como um astronauta perdido em órbita no breu sem estrelas do asfalto. Seguiu rua afora virado no estopô, com o diabo atentando as idéias... Virou esquina com sinaleira fechada, quase derrubou um gari no acostamento e por pouco não se estrebuchava na traseira de um buzu! Queria passar rápido na padaria pra poder chegar cedo na casa da sua pequena. Após comprar meia dúzia de cacetinhos, abriu o gás rumo aos beijos prometidos. De repente, alguns minutos depois, deu de frente com uma ladeira retada de em pé... Sua bicicleta verde chuchu, apesar de bem charmosinha, era toda armengada! Apertou no freio pra diminuir o embalo, mas pra seu espanto a bendita não respondeu. Segurou no guidom com a garganta seca e as pernas bambas. Derrapou e capotou

O Capitão Gargalo

"Domingo eu era uma marinheira pin-up. Hoje tenho confetes no coração." (Mara Coradello) Gosta bastante de automóveis: obcecado. Seja vestido de mulher na folia momesca ou breguiado depois de vadiar pela rua ao deus-dará, sempre chega neném no seu apartamento alugado em frente ao botequim. Procura gastar a vida em notas estalantes de oncinha, sem modéstia alguma, jogando no matagal a herança que os pais deixaram ainda quando fedelho porquinho, baforando falatórios nas casas de donzelas marotas pelas esquinas do mundo, sentindo a relva frutífera da boemia crescer sob seus sapatos brilhantes de camelô. Um dia daqui a algum tempo sabe lá, quando estiver vovô safado de bengala, com um cigarrinho homeopático na boca enrugada, chamando as menininhas de broto e beliscando as nádegas alheias, vai entrar num opala negão com seus zolhinhos amarelados cobertos por óculos escuros de grau. O céu vai estar azul-bebê e no horizonte ninguém mais vai conseguir sentir seu bafo de pinga barata

Porpeta, O Garoto Gorducho

"E nada era interessante, nada. As pessoas eram limitadas e cuidadosas, todas iguais. E eu teria que viver com esses putos pelo resto de minha vida, pensava. Deus, eles todos tinham cus, e órgãos sexuais e suas bocas e seus sovacos." (Charles Bukowski, Misto Quente) Apesar de gordo, conseguia atravessar a porta estreita do banheiro. Sua barriga gigante parecia um botijão de gás e isso não era o maior dos desconfortos. Nunca acertou o mijo no vaso sanitário, mas isso o fez gostar de quadrinhos. Uma barba eternamente por fazer, um short escocês quadriculado, e uma camiseta desbotada. Porpeta, apelido que ganhou na época do colégio, era um garoto narcisista. Vestia cueca de grife, pintava as unhas de vermelho, depilava as pernas e fazia as sobrancelhas. Seu divertimento era o cinema. Sempre que possível, assistia aos filmes de Godard. Dizia que Anna Karina tinha glamour, e que nunca encontrou mulher mais bela. Morou durante anos com o avô esclerosado, seu único parente que aind

A Rinha, Um Táxi de Galinheiro

Peguei o metrô no fim da tarde e desembarquei na estação Parklife, a parada mais próxima da Space Oddity. Sete infindáveis quilômetros, para ser mais exato. Na chegada, deparei-me com Billie Jean, o galo taxista que mora ao lado do meu prédio. Abatido e a fumar um charuto venezuelano, ele estava no ponto de táxi que fica em frente às escadarias que dão acesso ao metrô. Depois dos cumprimentos, com direito a um abraço apertado e uma gargalhada ecoante, ofereceu-me uma carona até em casa. Aceitei, pois minhas pernas estavam bambas de cansaço. Seu carro é confortável, apesar de ser um Fusca 69. Aquele fusquinha tinha, de fato, uma certa sofisticação. Um frigobar embutido no banco de trás, vidros fumês, ar-condicionado. Parecia um daqueles automóveis de gângster, dos filmes noir. Dentro dele, Billie baforava anéis de fumaça no pára-brisa. Camarada, ainda me deu um saquinho com grãos de milho modificados geneticamente. Rango de galináceo, não era gostoso! Fingi engolir a tal ração e cuspi t

Os Gambás, Dos Bandidos Marsupiais

Vesti o meu jeans rasgado, peguei um boné e saí apressado pro trabalho. Acordei na marra, após passar a noite em claro entretido pelas elucubrações pós-modernas de Yoshimoto. Dez minutos depois, com um café preto e dois pedaços de pão na barriga, começo mais uma batalha, no melhor estilo Dom Quixote. E o que o destino desejar acontece comigo dentro deste ônibus. Rotina desagradável, mas que de alguma forma não me deixa morrer e garante minha dignidade. Sobrevivo no subúrbio, na violenta Space Oddity, mas isso não chega a ser um desconforto. Office-boy pela manhã, ajudante de pedreiro pela tarde, professor de literatura numa escola pública pela noite. A grana que ganho põe comida na geladeira, paga minhas contas e ainda sobra pra algum divertimento. Um vídeo cassete, para que Godard nunca me abandone nas madrugadas; um toca-discos bacaninha, onde ouço meu jazz endiabrado; e, acima de tudo, meus livros! Kafka, Agrippino, Nelson Rodrigues, García Márquez... Sou pobre, mas penúria não é si

A Rua Space Oddity

Anoiteceu na megalópole dos demônios! Anjos decaídos no paraíso caótico, disfarçados de coveiros, vagabundos, taxistas, engraxates... vestidos em roupas maltrapilhas, com suas asas sujas pelo monóxido de carbono que exala dos tocos de cigarros jogados no passeio. Galos dirigindo automóveis, bebês mortos dentro das lixeiras, profetas a gritar nos pontos de ônibus. Um purgatório de doenças venéreas aos doze anos! De meninas mutiladas e garotos castrados. E Murakami escreve respostas dúbias para os leitores cegos da Space Oddity, a rua onde moro. Lugarzinho abominável e que tem cheiro de vômito. Nas portas das igrejas, porcos bípedes pedindo esmola aos padres cafetões, freiras prostitutas no confessionário, moleques deitados nos bancos a rasgar carnes putrefatas nos dentes cariados... e alguns jacarés a vender heroína atrás do altar. Porque não adianta fugir da pilantragem, da violência gratuita e atrativa. Campo de concentração no espaço vazio das orgias oligofrênicas! Elefantes pedalam

Dela Para Sempre

Do tráfego, apenas desconforto e automóveis barulhentos. Aquele beijo tatuado no rosto e algumas partes quebradas aqui dentro do peito. Claridade repentina e não vejo outra coisa além do seu riso maroto ao acordar. Sua língua no céu da minha boca, cócegas na barriga e uma bagunça engraçada com almofadas. Nada acontece, apesar da vontade louca de gritar pela rua durante todo o trajeto. Um almoço de macarrão instantâneo e pratos sujos na pia enquanto nossa filhinha acontece no sofá. Banhos gelados, agarrados, arrepiados na madrugada que nunca acaba para nós. Estaciono o carro na vaga que restou. Das velas apagadas, o apartamento recém alugado e o armário repleto de planos. Cada tarde agradável na varanda do quarto e alguns abraços apertados com direito a mordidinhas no cangote. E eu chego até o túmulo. Para depois deitar sobre os azulejos coloridos na sala de visitas e adormecermos nus. Ventinho sorrateiro que entra pela brecha da janela. Ajoelhado, chorei. Morangos, suco de laranja e to

Monólogo ao Pé do Volante

Seria tudo bom e perfeito, mas o afeto desapareceu do nada, embora o nada guarde, por vezes, surpresas inesperadas de algo que não se pode explicar. Naquele automóvel, parado no tráfego degradante, enxerguei o céu de baunilha escondido entre os prédios. Fotografei a rua com os olhos de Verger. O vento e a poeira pelo retrovisor eram uma tempestada aqui dentro. Qualquer sonho de cochilo radiofônico que se repetia sem parar. Paranóicos dedos no freio de mão e aquilo mastigava meus pensamentos. Então, de repente, o pára-brisa quebrou e eu fui tragado para fora do carro, jogado por cima do capô. Senti a barriga rasgar, como se eu tivesse cometido haraquiri sobre o asfalto. E vi Yukio Mishima vestido de samurai na porta da igreja. Sangue cuspido na faixa de pedestres. Zunidos de gilete na boca entreaberta da morte. Os demônios também têm asas. Caído de bruços, não consegui alcançar o revólver das poesias de Piva e fiquei sem a palavra certa. Revidar de que forma? Uma vingança dos anjos, pen

Eu, Os Pecados & A Glória de Chorar

"Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes." (Graciliano Ramos, Vidas Secas ) Conceba-me aspirações, neste castelo de areia amarela, onde as recordações costumam dançar entre os fogos de artifício e meiguices dos teus olhos. Comigo, inquietações e fantasias, passos firmes em direção ao vento. E se o tempo me abraçar, nos meus beijos irá entorpecer, com um calor entrelaçado ao pescoço, ou o pó das fadas a encaracolar seu vestido no meu corpo. Uma máscara rosa, como um lençol de seda, branca, com pinceladas rubras romãs, ocultando o sorriso maroto, o brilho no olhar; orquídea. Orgíaco não, todavia sedutor ao extraordinário, na sede de te ter e de se perder no seu bloco, em meio aos seus devaneios. Choro a saudade, paixão ardente no berço de cafunés vagarosos, o anseio

Há O Que Saber das Portas e Corredores

"Fico feliz que tenha vindo. Tenho tantas coisas para lhe dizer. Você deve estar se sentindo bem frágil agora, eu espero. Esta casa... faz coisas com a mente. (...) Às vezes, eu acho que o asilo é uma cabeça. Estamos dentro de uma cabeça que nos sonha. Talvez seja a sua cabeça,..." (Grant Morrison, Asilo Arkham; Chapeleiro Louco ) Onde és o que quiçá jamais acontecerá no seu quarto de cortinas desbotadas; como um porquê fantástico, cheio de éter ou pó, grãos da bebedeira mais psicodélica dentre os anos infindáveis do teu ser. Só não compreendo seu olhar de garota chorona, se naquela cama a mulher reina entrelaçada aos lençóis. Lendo tua boca romã, nesta ânsia de respostas sufocadas, a fim de te despetalar, consigo me encontrar. E a limpar tuas lágrimas, mostro-te o sossego aconchegante da minha loucura. Eu e estas harpas, a roçar seus ouvidos com tramas, conseguimos navegar na tua concha de pérolas. O suor no corpo e o céu de estrelas pálidas. Faça-me água no chão do seu cor

Os Palhaços Que Não Sabem Sorrir

"O verdadeiro mundo, nós o expulsamos: que mundo resta? O aparente, talvez?... Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente! (Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo erro; ponto alto da humanidade; INCIPT ZARATHUSTRA.)." (Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, Como o "Verdadeiro Mundo" acabou por se tornar em fábula, História de um Erro ) Lá ao longe, eles jaziam. Sentados no meio-fio daquela esquina suja, junto aos ratos nojentos, cadáveres da noite, com as faces manchadas de tinta branca e rubra. Os dois saltimbancos, observando o trânsito congestionado, além do céu rosa, começaram a chorar; e das lágrimas, que molhavam o chão com pingos de dor, nascera o menino de coração puro e a criança saiu a bradar pela rua canções antes esquecidas. Com um olhar de curiosidade, o garoto, após percorrer os becos abismados, a disseminar sua poesia cósmica, parou diante dos palhaços, melancólicos, e colocou-se, sem hesitar, em posição de rever

A Chave e Os Portões do Coração

"Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém." (Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H. ) Quando eu era cachorro, inteligente e tagarela, animal de estimação, a latir para as pessoas, conheci um certo beija-flor, que me ensinou a voar. O jardim, onde fui dragão, a habitar belas senhoritas, transformou-se em criança e no céu, a brincar com um oráculo de porcelana, morreu nos braços da mãe. E talvez homem, soberano de nostalgias poéticas, eu consiga abrir as portas para a tua singela utopia. Também fui barão ou marquês, um anjo ou super herói, um advogado de sapatos amarelos, recordação dos tempos em que fui gato e sonhei com a princesa dos lábios rosados. Um ator ou pierrô, rei sem coroa, a tocar piano nas esquinas dos corações apaixonados. Como mendigo, fui um ancião agradável, sábio chinês analfabeto, que com poesias alegres, literatura de cordel, encantava as multid